domingo, 30 de março de 2008

Sociedade do Alfredinho

Enquanto doutores em filosofia, psicologia e sociologia procuram emaranhar cada vez mais conceitos sobre a sociedade, apoiando-se nas colunas de Atenas para fundamentar teses, prefiro a vertente em que apenas apóio a cabeça naquele travesseiro para formular minhas teorias. A almofadinha, gentilmente cedida pela Itapemirim e outras viações, na viagem de onze horas que faço quinzenalmente a Belo Horizonte, é um filtro das idéias. Depois de tirá-la de um higiênico saco plástico, encosto-a na janela do ônibus para repousar a nuca e trabalhar os pensamentos: nada melhor que o transporte para enxergar a tal sociedade.

Comecei a formular a teoria em um ônibus nada convencional: o transporte do Alfredinho, uma linha interestadual alternativa. Como muitos mineiros que trabalham em Brasília e têm saudades da família, entrei no esquema do trecho BH/BSB, adaptando-me àquela louca sociedade: a família Alfredinho. Toda semana, Alfredo dos Santos, mais ou menos 40 anos, funcionário da Caixa Econômica, fretava dois ônibus de turismo para levar sempre as mesmas pessoas, analistas de sistemas, servidores públicos, colegas do Banco, para a capital mineira. No meio de toda essa gente, eu, jornalista, com tantas críticas e pensamentos fervilhando sobre a tal sociedade.

Acabei descobrindo o ônibus dos mineiros que têm saudades da família acidentalmente. Esbarrei numa colega de Beagá, a Marilda, em um dos shoppings da cidade. Foi aí que ela anotou em um guardanapo o telefone do Alfredo. Valia a pena: a tarifa era bem mais barata que a das tradicionais viações. De quinze em quinze dias, toda sexta-feira, ia para a porta de um hotel em Brasília esperar o ônibus de turismo que prometia ar condicionado, tv, vídeo e todas aquelas mordomias coloridas da infografia da lateral do carro.

Alfredinho era esperto e o que era inicialmente uma brincadeira, uma idéia de amigos da repartição para incrementar a renda, acabou prosperando. Fretou mais um ônibus e outro: quatro sociedades distintas foram formadas. Tinha o poder de decidir em qual dos veículos cada uma das pessoas iria. Sabia dividir bem as coisas. Colocava os amigos em um carro, auxiliares administrativos de outro órgão público em outro. Arrumou um lanchinho para controlar as massas que já exigiam um desconto na passagem. Inventou pacotes, fichou os passageiros, fez os tais cartões de fidelidade. Realmente, era dono da cidade. Tinha seus assessores, ou melhor, cobradores de bilhetes. A sociedade era bem justa: todos possuíam a mesma infra-estrutura. Criou-se a hierarquia socialista do Alfredo: a harmonia estava falsamente estabelecida; intocável.

Alfredo me colocou ao seu lado na pimeira viagem, na segunda e em todas que fiz: o assento 9. Conversava horas a fio, enquanto eu só queria ser educada. Escutava e depois pedia licença para dormir. Ele cuspia mais algumas palavras. Era um falante compulsivo. Falava sobre o negócio promissor, sobre contabilidade, podia ver cifrões na escuridão do ônibus. Pensei em mudar de lugar, mas como fazer essa solicitação se era ele quem escolhia os assentos?

Quando o ônibus chegava à rodoviária de Belo Horizonte, Alfredo, depois de alugar meu ouvido por horas, abraçava esposa e filhos, e não me desejava nem mesmo um “bom fim de semana”. No retorno à Brasília, coincidentemente, estava novamente na cadeira nove. Apesar de nunca ter me cantado, aquela situação era constrangedora, sem nexo nem sexo.

Sem coragem de pedir para mudar para outro gueto, resolvi tomar uma decisão radical: fugir daquela sociedade. Foi então que tive que me habituar às democráticas sociedades dos ônibus das linhas tradicionais. Não tinha que dormir mais com o Alfredo, cada semana era uma cara e um cacoete diferente. Novamente a teoria da sociedade. É engraçada a capacidade que temos de dormir ao lado de pessoas que não conhecemos. Sem falar que acordamos com aquela cara amarrotrada e ainda temos que falar bom dia, com aquele bafo, ao companheiro de viagem. Pensando bem não é muito diferente que dormir com uma pessoa da sociedade da caça noturna dos bares e afins.

Nunca tive muita sorte na escolha dos meus assentos. Os garotos lindos e legais, aqueles que se oferecem para pegar água gelada para você nas paradas e serão futuramente os homens da sua vida, só existem nos filmes e novelas. Ao meu lado, sempre estão elas: mulheres carentes que gostam de mostrar fotografias da família. Elas nunca esquecem seus travesseiros gigantescos com aqueles tentáculos. Ou estão eles: os tarados de plantão que quando fingem dormir dão um jeito de cair em meu ombro direito ou esquerdo, depedendo da numeração da cadeira: par ou ímpar. Sem falar que tenho que aguentar papos chatos e óbvios: “Você é de Beagá ou de Brasília?”.

Na sociedade de ônibus, enquanto uma pessoa quer ler um bom livro, a outra não consegue dormir com a luz acesa. Neném chora, mamãe tem que dar de mamar. A sociedade dos lares pronta para ser exposta em uma viagem de 700km.

A sociedade surge em qualquer lugar. Uns mandam, outros obedecem, outros convencem, a maioria se confunde e todos se divertem. No último mês que fui a BH, tive uma grande sorte na escolha do meu assento. Aquela colega de Beagá, que me deu o telefone da linha alternativa, viajou ao meu lado. Achei estranho, já que ela havia me dito que destetava ônibus da viação Itapemirim. Ela confessou que não aguentava mais o papo da cadeira 9. Já o Alfredinho não aluga mais seus ônibus, tem sua própria frota.

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