terça-feira, 29 de abril de 2008

Nossos tanques




Na mesa de raio-x, a mulher de jaleco branco pedia para a paciente não se mover. Antes das fotos do fêmur ficarem prontas, uma abelha rainha prendia o testículo de um zangão no canto da sala, que não havia sido varrida pela faxineira Marilda. Outras operárias da mesma colméia da abelha rainha haviam picado, minutos antes da paciente se deitar na mesa de raio-x, um cabelereiro que estava na maca no corredor do hospital. A alergia a picadas de abelhas foi constatada no mesmo prédio de paredes azuis para onde agora ele olhava com desespero. Os ferrões ainda cravados. Seus glóbulos brancos ainda mais pálidos.


O seu coração batia bem menos descompassado que o do casal que transava na sala de próteses, entre parafusos. Ferormônios, endorfinas e estamina. Um espermatozóide quase chegou, mas ficou cansado. O seu adversário, no entanto, conseguiu fecundar o óvulo, que viraria um feto e, mais tarde, um bebê, que teria seu cordão umbilical cortado com as tesouras esterelizadas daquele mesmo hospital. O recém-nascido virou menino.


O menino cresceu olhando o áquario marinho montado no hall de entrada da ortopedia . Imaginava uma orquestra sinfônica, onde as conchas eram os amplificadores e os gramofones. Os peixes dançando... Alguns tímidos perdendo ternos listrados ou vestidos de bolinhas…Sua imaginação fugia sem equilíbrio. Naquele tanque de água cabia mundo. Queria ser seu peixe favorito. Bem longe do hospital, do cheiro de gaze, planejava ser feliz...

terça-feira, 1 de abril de 2008

Novelo



Antes de morrer,
abra todas as portas
de cupim maciço do medo.
Escancare-as.
Deixe que o ranger metálico
ative as resignações encaixotadas.
Leve seus cabelos soltos
para um último passeio,
no quintal do esquecimento.
Veja as estrelas como
hematomas
a lembrar que refúgio
em ser humano é nuvem.

Antes de morrer,
pise firme nas tábuas corridas
do sótão das desilusões.
Invada sua casa com fome de vida:
O peso consentido
do batente da porteira
revela as engrenagens das suas fugas.
Os sermões a cortar os poros frescos
antes do jantar.
No ouvido, nos olhos, no tremor das mãos.
A bíblia do jejum, o texto dos antigos.
O alimento à espera em panelas de ferro,
o tempo, o pão, a ovelha,
a casa do Senhor, nada me faltará.

Os lábios tenros do avô
a empostar um canto comungado.
Cotovelos e punhos mirins
sob a longa mesa,
olhos baixos, pés suspensos nos bancos,
troncos de árvores, raízes arrancadas.

Antes de morrer, repita em voz alta
aquele mesmo amém aliviado
das verdades incompreendidas
dos sermões antes do jantar.
O prato esmaltado e a louça trincada
ainda estão lá.
Os olhos da casa.

A sombra dos adultos na cozinha,
conversas sem poesia.
O dia-a-dia.
No quarto, a insônia acompanhada de
besouros em estalos na alvenaria.


Antes de morrer,
Deixe acesas as lâmpadas
fosforescentes que florescem do teto.
Construa as últimas teias de aranha.
Veja as vigas de suas veias
nas paredes de cal.
O vão da altura das telhas sem forro,
palco de todos os insetos e barulhos noturnos.

Durante o dia, molhe os lábios no sol
a berrar entre as cortinas.
Quadrados de luz projetados
na parede em meio à ventania.
Lembre-se do toque proibido
no corpo alvo entre lençóis quarados.
Solidão ardente.
No varal, o equilíbrio do bambu e do vento
sustenta vestidos sujos de desejo.
Inflamáveis rosários de desejo.
Sinta o pecado do sopro morno
do campo nas coxas,
folhas despenteadas dos cipestres,
rosa envergada no ventre,
a paixão dos primos.
Dedos ristes de pecados brancos.
Família de incêndio em histórias crespas
de vagalumes embotados.

Nas frestas,
o tempo nas badaladas roucas
do relógio da parede.
Os espelhos sem rostos, os retalhos das colchas,
o cheiro de carne de lata,
o amarelo do angu na boca dos cachorros,
o farelo de nós emaranhados nas folhagens.
O polvilho, o talco da morte nas montanhas .

Ensope os sentidos ao farejar o coalho salgado
nas pontas dos dedos sutis da avó.
O caldo das frutas escorrendo pelos braços.
Abertas como pálpebras,
as botas cansadas de capim te esperam
ao lado das bacias de água fervente.

Antes da morte à espreita,
respire o ar do Ingá, do Jequitibá, do Ipê-branco,
dos cogumelos que as chuvas deixaram nas fanfarras
do estrume dos gados.


Antes da morte, ela que tem poeira nos olhos,
aceite o clandestino de suas enfermidades,
as fotos das gerações e a mesa sempre posta
em sentinela a ordenar a febre dos pensamentos.
Deixe que os grandes personagens desfilem pelas grandes janelas:
peneira, enxada, leiteiro, rodas da carroça.

Mas
antes de morrer, não deixe de dar as mãos
ao deuses vegetais dos sonhos.
São eles, em rajadas de ventos de espinhos,
que ainda alimentam nossa pele.
São reais como um galope no tempo.
São entranhas fecundadas, idéias grávidas de
pólvora da resistência.
Essas lascas do destino a nos prometer
pássaros exilados.

Palavras
sepultadas esperam sua boca.
Um canto. A fome, a fome da paciência.
As labaredas do tempo.
Essa ponte sobre o rio largo:
ninguém parte, ninguém fica.
Até que o mundo se cale,
nossa eterna travessia.
Nossa casa.