segunda-feira, 31 de março de 2008

Síndrome do Salvamento


O ônibus despejou aquelas miniaturas de gente na entrada do colégio. No mesmo momento, a gorda Janira, para limpar as vidraças sujas, equilibrava-se em um dos pedestais antigos do prédio da escola. Elvira, uma menina de apenas oito anos, ficava imaginando coisas. Fazia perguntas que ninguém gosta de responder. Depois do silêncio e do eco dos seus questionamentos, desfazia alguns cachos presos por presilhas coloridas e, sozinha, solucionava seus enigmas infantis.

- E se a Janira cair, tem chance dela não morrer?
- Ah, já sei, anjos vão descer dos céus, eles já fizeram isso antes. Eu vi.

Os meninos espalhados no pátio riam.

Elvira continuava a olhar Janira enquanto o sininho da diretora Cici tocava. Aquele era o aviso de que todo mundo do mesmo tamanho tinha que fazer uma fila antes de entrar na sala de aula. Enquanto meninos e meninas atropelavam – se para pegar os melhores lugares, Elvira não ligava de ficar na última posição.

Na sua cadeira, na sala de aula, enquanto os outros alunos desenhavam aviões, dragões e fábricas com chaminés e suas fumaças, Elvira gostava de debruçar a cabeça no colo e ficar criando estórias. Mergulhada em sua imaginação, afirmava que podia escutar árvores pedindo socorro dentro da madeira maciça em que o corpo se apoiava.


Os professores, o vigia da escola, seus colegas de classe, todos a olhavam como se ela não se encaixasse naquele mundo. Elvira era mesmo diferente. Tinha um pescoço grande como o da avó. Seus cabelos, às vezes acordavam lisos, outrora, cacheados. Sardas apinhavam no seu rosto, mais concentradas em uma bochecha que na outra. Mas os olhos eram como os das crianças na sua idade: querem ver tudo, as pupilas dilatavam-se para observar as coisas que os adultos acham saber.

Em casa, Elvira preocupava os pais. Não sabiam o que havia de errado na educação da filha. Elvira tinha a síndrome do salvamento. Mas, infelizmente, a psiquiatria ainda não sabia disso. Enquanto a empregada Maria José varria os cômodos, a garota sardenta a seguia. Conformada com as maluquices da menina, achava que a coitada só queria um pouco de atenção ou gostava de ouvir as músicas que trouxe consigo lá daquela cidade enterrada no meio do mapa.

Após a limpeza, Elvira abria o latão de lixo e catava tudo que achava triste ali dentro. Palitos quebrados, pacotes amassados. Em seu armário, o entulho ganhava lugar de destaque na prateleira, debaixo de suas roupas quentinhas. Tinha pena daquelas coisas serem descartadas assim sem mais nem menos. Precisava salvá-las. Ela se lembrou, em uma das suas inúmeras noites de insônia, que um anjo sem asas havia lhe dito que tudo tem alma no mundo: as plantas e os animais, por menores que sejam. Até os parasitas e o lodo que fica na cachoeira da fazenda da roça têm seu encanto de eternidade.

Enquanto isso, seus brinquedos novos continuavam intocáveis em dois baús grandes em uma estante de mogno claro embutido. Nem seu pequeno piano ganhava sua atenção. Elvira só gostava daquilo que dava dó.

Na rua olhava bem fixa para o chão, não queria pisar bruscamente em nenhuma flor vertical, em nenhum inseto piedoso fazendo o árduo caminho ou nas formigas suportando pedaços de folhas dez vezes maiores que seu peso. Os seus pés andavam delicados no caminho do dia-a-dia.

Elvira cresceu e as esquisitices de querer salvar o mundo também. Primeiro foi o lixo, agora era a vez dos pobres animais receberem seu socorro. Aos 13 anos, quase não conversava com ninguém. E quando o fazia era apenas para fazer perguntas incômodas. Passava a maior parte do tempo com os cães e gatos que havia recolhido na rua – muitas vezes esses apareceram do nada em sua casa, em caixas de papelão. A sua mãe não gostava de contrariar as caridades da filha única. Pobrezinha. A fama de Elvira havia se espalhado pelo bairro. Sempre tinha mais um lugar no canil para um belo vira-lata. As aves feridas pareciam reconhecer o caminho e voavam sempre para o pátio cinzento que Elvira cobria com grãos de arroz.

A analista de Elvira, uma tal de Márcia, não conseguia responder as interrogações da garota, que mais tarde acabaram virando suas próprias indagações. Tantas questões: os famintos na rua, os palestinos sem pátria, os brasileiros sem pátria, os moleques que rodeavam as montanhas de lixo, a camada de ozônio, os peixes atolados em manchas de óleo... os...

Aos 16 anos, virou ativista do Green Peace; salvou baleias. Mas não bastava... O mundo todo precisava ser curado e ela era só Elvira, a esquisita. Não dava para salvar formigas. O próprio ecossistema necessitava de aniquilamentos mútuos para a própria existência, a tal da cadeia alimentar, os hipopótamos que matavam seus filhotes, a própria seleção natural de Darwin: tudo fazia tanto sentido.

O mundo todo estava doente, mas não era sua culpa. No seu armário, ela só conseguia guardar papéis velhos e sonhos. Não podia salvar o mundo. E um belo dia descobriu isso. Não se revoltou contra Deus e o mundo imperfeito, as injustiças. Passou a ser que nem todo mundo. Acordava, planejava ter uma profissão e à noite freqüentava a mesma igreja da mãe. Escutava atenta as palavras do pastor. Não era mais esquisita; tornou-se mundana. Com a bíblia debaixo do braço, não pensava em salvar mais nada, apenas a sua alma.

domingo, 30 de março de 2008

Sociedade do Alfredinho

Enquanto doutores em filosofia, psicologia e sociologia procuram emaranhar cada vez mais conceitos sobre a sociedade, apoiando-se nas colunas de Atenas para fundamentar teses, prefiro a vertente em que apenas apóio a cabeça naquele travesseiro para formular minhas teorias. A almofadinha, gentilmente cedida pela Itapemirim e outras viações, na viagem de onze horas que faço quinzenalmente a Belo Horizonte, é um filtro das idéias. Depois de tirá-la de um higiênico saco plástico, encosto-a na janela do ônibus para repousar a nuca e trabalhar os pensamentos: nada melhor que o transporte para enxergar a tal sociedade.

Comecei a formular a teoria em um ônibus nada convencional: o transporte do Alfredinho, uma linha interestadual alternativa. Como muitos mineiros que trabalham em Brasília e têm saudades da família, entrei no esquema do trecho BH/BSB, adaptando-me àquela louca sociedade: a família Alfredinho. Toda semana, Alfredo dos Santos, mais ou menos 40 anos, funcionário da Caixa Econômica, fretava dois ônibus de turismo para levar sempre as mesmas pessoas, analistas de sistemas, servidores públicos, colegas do Banco, para a capital mineira. No meio de toda essa gente, eu, jornalista, com tantas críticas e pensamentos fervilhando sobre a tal sociedade.

Acabei descobrindo o ônibus dos mineiros que têm saudades da família acidentalmente. Esbarrei numa colega de Beagá, a Marilda, em um dos shoppings da cidade. Foi aí que ela anotou em um guardanapo o telefone do Alfredo. Valia a pena: a tarifa era bem mais barata que a das tradicionais viações. De quinze em quinze dias, toda sexta-feira, ia para a porta de um hotel em Brasília esperar o ônibus de turismo que prometia ar condicionado, tv, vídeo e todas aquelas mordomias coloridas da infografia da lateral do carro.

Alfredinho era esperto e o que era inicialmente uma brincadeira, uma idéia de amigos da repartição para incrementar a renda, acabou prosperando. Fretou mais um ônibus e outro: quatro sociedades distintas foram formadas. Tinha o poder de decidir em qual dos veículos cada uma das pessoas iria. Sabia dividir bem as coisas. Colocava os amigos em um carro, auxiliares administrativos de outro órgão público em outro. Arrumou um lanchinho para controlar as massas que já exigiam um desconto na passagem. Inventou pacotes, fichou os passageiros, fez os tais cartões de fidelidade. Realmente, era dono da cidade. Tinha seus assessores, ou melhor, cobradores de bilhetes. A sociedade era bem justa: todos possuíam a mesma infra-estrutura. Criou-se a hierarquia socialista do Alfredo: a harmonia estava falsamente estabelecida; intocável.

Alfredo me colocou ao seu lado na pimeira viagem, na segunda e em todas que fiz: o assento 9. Conversava horas a fio, enquanto eu só queria ser educada. Escutava e depois pedia licença para dormir. Ele cuspia mais algumas palavras. Era um falante compulsivo. Falava sobre o negócio promissor, sobre contabilidade, podia ver cifrões na escuridão do ônibus. Pensei em mudar de lugar, mas como fazer essa solicitação se era ele quem escolhia os assentos?

Quando o ônibus chegava à rodoviária de Belo Horizonte, Alfredo, depois de alugar meu ouvido por horas, abraçava esposa e filhos, e não me desejava nem mesmo um “bom fim de semana”. No retorno à Brasília, coincidentemente, estava novamente na cadeira nove. Apesar de nunca ter me cantado, aquela situação era constrangedora, sem nexo nem sexo.

Sem coragem de pedir para mudar para outro gueto, resolvi tomar uma decisão radical: fugir daquela sociedade. Foi então que tive que me habituar às democráticas sociedades dos ônibus das linhas tradicionais. Não tinha que dormir mais com o Alfredo, cada semana era uma cara e um cacoete diferente. Novamente a teoria da sociedade. É engraçada a capacidade que temos de dormir ao lado de pessoas que não conhecemos. Sem falar que acordamos com aquela cara amarrotrada e ainda temos que falar bom dia, com aquele bafo, ao companheiro de viagem. Pensando bem não é muito diferente que dormir com uma pessoa da sociedade da caça noturna dos bares e afins.

Nunca tive muita sorte na escolha dos meus assentos. Os garotos lindos e legais, aqueles que se oferecem para pegar água gelada para você nas paradas e serão futuramente os homens da sua vida, só existem nos filmes e novelas. Ao meu lado, sempre estão elas: mulheres carentes que gostam de mostrar fotografias da família. Elas nunca esquecem seus travesseiros gigantescos com aqueles tentáculos. Ou estão eles: os tarados de plantão que quando fingem dormir dão um jeito de cair em meu ombro direito ou esquerdo, depedendo da numeração da cadeira: par ou ímpar. Sem falar que tenho que aguentar papos chatos e óbvios: “Você é de Beagá ou de Brasília?”.

Na sociedade de ônibus, enquanto uma pessoa quer ler um bom livro, a outra não consegue dormir com a luz acesa. Neném chora, mamãe tem que dar de mamar. A sociedade dos lares pronta para ser exposta em uma viagem de 700km.

A sociedade surge em qualquer lugar. Uns mandam, outros obedecem, outros convencem, a maioria se confunde e todos se divertem. No último mês que fui a BH, tive uma grande sorte na escolha do meu assento. Aquela colega de Beagá, que me deu o telefone da linha alternativa, viajou ao meu lado. Achei estranho, já que ela havia me dito que destetava ônibus da viação Itapemirim. Ela confessou que não aguentava mais o papo da cadeira 9. Já o Alfredinho não aluga mais seus ônibus, tem sua própria frota.

sábado, 29 de março de 2008

Cambalhotas sapecas na Itália


O carteiro e o poeta

O Jornal literário italiano Isla Negra publicou a poesia Saltimbancos, do livro Conjugação de Pingos de Chuva, na sua edição de novembro de 2007. E não é que uma poesia do Fernando Pessoa está dando umas cambalhotas sapecas logo acima do meu texto. Confiram na página 23:

http://www.ildialogo.org/poesia/IslaNegra118.pdf

quinta-feira, 20 de março de 2008

Por aí...poesias


Acho que com essa foto consigo resumir um pouco do que é felicidade, o que senti quando algumas poesias minhas foram publicadas no site do poeta Antônio Miranda. Confiram e inté mais!!!!

domingo, 16 de março de 2008

Conjugação de Pingos de Chuva

Carla Andrade/Editora LGE/R$20

Esté é meu primeiro livro de poesias, publicado no final do ano passado pela Editora LGE, com recursos do Fundo da Arte e da Cultura (FAC). Ele está à venda nas melhores livrarias de Brasília. Na prateleiras, ele insiste em ficar no meio de um tal de Mário de Andrade e de outro poeta chamado Carlos Drumond de Andrade. Quem quiser pode pedir pela internet, basta acessar o google e colocar o nome do livro que aparecerão as possibilidades de compra. Enquanto isso, "Conjugação de Pingos de chuva" está na estante de alguma livraria entre o peso desses dois autores. Inté mais...



sexta-feira, 14 de março de 2008

Irmãs sobrevivem a tiroteio


Calma!!! Minha vizinhança era bem tranqüila. Os tiros são tachinhas, aqueles alfinetes barrigudinhos que pinicam nossas fotos, mas colorem os painéis de cortiça dos nossos quartos. Já tive um painel que ficava na cozinha, bem mais moderno, as tachinhas foram substituídas pelos imãs. Um dia, inventei de fritar coraçãozinho de galinha (sempre faço a triste conta: se são 20 corações são 20 galinhas, ai meu Deus!!!). A atração magnética foi tão grande que o meu painel virou uma coifa. Painéis com fotos só nos quartos das mocinhas. Ah, reparem no detalhe da minha camisa: o palhaço da gelatina Royal estava presente. Abra a boca é Royal!!!