O ônibus despejou aquelas miniaturas de gente na entrada do colégio. No mesmo momento, a gorda Janira, para limpar as vidraças sujas, equilibrava-se em um dos pedestais antigos do prédio da escola. Elvira, uma menina de apenas oito anos, ficava imaginando coisas. Fazia perguntas que ninguém gosta de responder. Depois do silêncio e do eco dos seus questionamentos, desfazia alguns cachos presos por presilhas coloridas e, sozinha, solucionava seus enigmas infantis.
- E se a Janira cair, tem chance dela não morrer?
- Ah, já sei, anjos vão descer dos céus, eles já fizeram isso antes. Eu vi.
Os meninos espalhados no pátio riam.
Elvira continuava a olhar Janira enquanto o sininho da diretora Cici tocava. Aquele era o aviso de que todo mundo do mesmo tamanho tinha que fazer uma fila antes de entrar na sala de aula. Enquanto meninos e meninas atropelavam – se para pegar os melhores lugares, Elvira não ligava de ficar na última posição.
Na sua cadeira, na sala de aula, enquanto os outros alunos desenhavam aviões, dragões e fábricas com chaminés e suas fumaças, Elvira gostava de debruçar a cabeça no colo e ficar criando estórias. Mergulhada em sua imaginação, afirmava que podia escutar árvores pedindo socorro dentro da madeira maciça em que o corpo se apoiava.
Os professores, o vigia da escola, seus colegas de classe, todos a olhavam como se ela não se encaixasse naquele mundo. Elvira era mesmo diferente. Tinha um pescoço grande como o da avó. Seus cabelos, às vezes acordavam lisos, outrora, cacheados. Sardas apinhavam no seu rosto, mais concentradas em uma bochecha que na outra. Mas os olhos eram como os das crianças na sua idade: querem ver tudo, as pupilas dilatavam-se para observar as coisas que os adultos acham saber.
Em casa, Elvira preocupava os pais. Não sabiam o que havia de errado na educação da filha. Elvira tinha a síndrome do salvamento. Mas, infelizmente, a psiquiatria ainda não sabia disso. Enquanto a empregada Maria José varria os cômodos, a garota sardenta a seguia. Conformada com as maluquices da menina, achava que a coitada só queria um pouco de atenção ou gostava de ouvir as músicas que trouxe consigo lá daquela cidade enterrada no meio do mapa.
Após a limpeza, Elvira abria o latão de lixo e catava tudo que achava triste ali dentro. Palitos quebrados, pacotes amassados. Em seu armário, o entulho ganhava lugar de destaque na prateleira, debaixo de suas roupas quentinhas. Tinha pena daquelas coisas serem descartadas assim sem mais nem menos. Precisava salvá-las. Ela se lembrou, em uma das suas inúmeras noites de insônia, que um anjo sem asas havia lhe dito que tudo tem alma no mundo: as plantas e os animais, por menores que sejam. Até os parasitas e o lodo que fica na cachoeira da fazenda da roça têm seu encanto de eternidade.
Enquanto isso, seus brinquedos novos continuavam intocáveis em dois baús grandes em uma estante de mogno claro embutido. Nem seu pequeno piano ganhava sua atenção. Elvira só gostava daquilo que dava dó.
Na rua olhava bem fixa para o chão, não queria pisar bruscamente em nenhuma flor vertical, em nenhum inseto piedoso fazendo o árduo caminho ou nas formigas suportando pedaços de folhas dez vezes maiores que seu peso. Os seus pés andavam delicados no caminho do dia-a-dia.
Elvira cresceu e as esquisitices de querer salvar o mundo também. Primeiro foi o lixo, agora era a vez dos pobres animais receberem seu socorro. Aos 13 anos, quase não conversava com ninguém. E quando o fazia era apenas para fazer perguntas incômodas. Passava a maior parte do tempo com os cães e gatos que havia recolhido na rua – muitas vezes esses apareceram do nada em sua casa, em caixas de papelão. A sua mãe não gostava de contrariar as caridades da filha única. Pobrezinha. A fama de Elvira havia se espalhado pelo bairro. Sempre tinha mais um lugar no canil para um belo vira-lata. As aves feridas pareciam reconhecer o caminho e voavam sempre para o pátio cinzento que Elvira cobria com grãos de arroz.
A analista de Elvira, uma tal de Márcia, não conseguia responder as interrogações da garota, que mais tarde acabaram virando suas próprias indagações. Tantas questões: os famintos na rua, os palestinos sem pátria, os brasileiros sem pátria, os moleques que rodeavam as montanhas de lixo, a camada de ozônio, os peixes atolados em manchas de óleo... os...
Aos 16 anos, virou ativista do Green Peace; salvou baleias. Mas não bastava... O mundo todo precisava ser curado e ela era só Elvira, a esquisita. Não dava para salvar formigas. O próprio ecossistema necessitava de aniquilamentos mútuos para a própria existência, a tal da cadeia alimentar, os hipopótamos que matavam seus filhotes, a própria seleção natural de Darwin: tudo fazia tanto sentido.
O mundo todo estava doente, mas não era sua culpa. No seu armário, ela só conseguia guardar papéis velhos e sonhos. Não podia salvar o mundo. E um belo dia descobriu isso. Não se revoltou contra Deus e o mundo imperfeito, as injustiças. Passou a ser que nem todo mundo. Acordava, planejava ter uma profissão e à noite freqüentava a mesma igreja da mãe. Escutava atenta as palavras do pastor. Não era mais esquisita; tornou-se mundana. Com a bíblia debaixo do braço, não pensava em salvar mais nada, apenas a sua alma.
- E se a Janira cair, tem chance dela não morrer?
- Ah, já sei, anjos vão descer dos céus, eles já fizeram isso antes. Eu vi.
Os meninos espalhados no pátio riam.
Elvira continuava a olhar Janira enquanto o sininho da diretora Cici tocava. Aquele era o aviso de que todo mundo do mesmo tamanho tinha que fazer uma fila antes de entrar na sala de aula. Enquanto meninos e meninas atropelavam – se para pegar os melhores lugares, Elvira não ligava de ficar na última posição.
Na sua cadeira, na sala de aula, enquanto os outros alunos desenhavam aviões, dragões e fábricas com chaminés e suas fumaças, Elvira gostava de debruçar a cabeça no colo e ficar criando estórias. Mergulhada em sua imaginação, afirmava que podia escutar árvores pedindo socorro dentro da madeira maciça em que o corpo se apoiava.
Os professores, o vigia da escola, seus colegas de classe, todos a olhavam como se ela não se encaixasse naquele mundo. Elvira era mesmo diferente. Tinha um pescoço grande como o da avó. Seus cabelos, às vezes acordavam lisos, outrora, cacheados. Sardas apinhavam no seu rosto, mais concentradas em uma bochecha que na outra. Mas os olhos eram como os das crianças na sua idade: querem ver tudo, as pupilas dilatavam-se para observar as coisas que os adultos acham saber.
Em casa, Elvira preocupava os pais. Não sabiam o que havia de errado na educação da filha. Elvira tinha a síndrome do salvamento. Mas, infelizmente, a psiquiatria ainda não sabia disso. Enquanto a empregada Maria José varria os cômodos, a garota sardenta a seguia. Conformada com as maluquices da menina, achava que a coitada só queria um pouco de atenção ou gostava de ouvir as músicas que trouxe consigo lá daquela cidade enterrada no meio do mapa.
Após a limpeza, Elvira abria o latão de lixo e catava tudo que achava triste ali dentro. Palitos quebrados, pacotes amassados. Em seu armário, o entulho ganhava lugar de destaque na prateleira, debaixo de suas roupas quentinhas. Tinha pena daquelas coisas serem descartadas assim sem mais nem menos. Precisava salvá-las. Ela se lembrou, em uma das suas inúmeras noites de insônia, que um anjo sem asas havia lhe dito que tudo tem alma no mundo: as plantas e os animais, por menores que sejam. Até os parasitas e o lodo que fica na cachoeira da fazenda da roça têm seu encanto de eternidade.
Enquanto isso, seus brinquedos novos continuavam intocáveis em dois baús grandes em uma estante de mogno claro embutido. Nem seu pequeno piano ganhava sua atenção. Elvira só gostava daquilo que dava dó.
Na rua olhava bem fixa para o chão, não queria pisar bruscamente em nenhuma flor vertical, em nenhum inseto piedoso fazendo o árduo caminho ou nas formigas suportando pedaços de folhas dez vezes maiores que seu peso. Os seus pés andavam delicados no caminho do dia-a-dia.
Elvira cresceu e as esquisitices de querer salvar o mundo também. Primeiro foi o lixo, agora era a vez dos pobres animais receberem seu socorro. Aos 13 anos, quase não conversava com ninguém. E quando o fazia era apenas para fazer perguntas incômodas. Passava a maior parte do tempo com os cães e gatos que havia recolhido na rua – muitas vezes esses apareceram do nada em sua casa, em caixas de papelão. A sua mãe não gostava de contrariar as caridades da filha única. Pobrezinha. A fama de Elvira havia se espalhado pelo bairro. Sempre tinha mais um lugar no canil para um belo vira-lata. As aves feridas pareciam reconhecer o caminho e voavam sempre para o pátio cinzento que Elvira cobria com grãos de arroz.
A analista de Elvira, uma tal de Márcia, não conseguia responder as interrogações da garota, que mais tarde acabaram virando suas próprias indagações. Tantas questões: os famintos na rua, os palestinos sem pátria, os brasileiros sem pátria, os moleques que rodeavam as montanhas de lixo, a camada de ozônio, os peixes atolados em manchas de óleo... os...
Aos 16 anos, virou ativista do Green Peace; salvou baleias. Mas não bastava... O mundo todo precisava ser curado e ela era só Elvira, a esquisita. Não dava para salvar formigas. O próprio ecossistema necessitava de aniquilamentos mútuos para a própria existência, a tal da cadeia alimentar, os hipopótamos que matavam seus filhotes, a própria seleção natural de Darwin: tudo fazia tanto sentido.
O mundo todo estava doente, mas não era sua culpa. No seu armário, ela só conseguia guardar papéis velhos e sonhos. Não podia salvar o mundo. E um belo dia descobriu isso. Não se revoltou contra Deus e o mundo imperfeito, as injustiças. Passou a ser que nem todo mundo. Acordava, planejava ter uma profissão e à noite freqüentava a mesma igreja da mãe. Escutava atenta as palavras do pastor. Não era mais esquisita; tornou-se mundana. Com a bíblia debaixo do braço, não pensava em salvar mais nada, apenas a sua alma.